Pós-graduações IMED 2013

sábado, 21 de julho de 2007

O problema Darwin

Grande parte das pessoas já ouviu falar da teoria da evolução de Charles Darwin. Sua contribuição para as ciências biológicas foi a formulação de uma teoria sobre o surgimento dos espécimes, concorrente com a de Jean Baptiste Lamarck. Enquanto Lamarck defendia que os seres vivos se modificavam pelo uso de seus membros e órgãos, e que esse funcionamento para mais ou menos passava de geração a geração, Darwin partiu de outra premissa: não é o uso dos órgãos que favorece ou não a modificação de uma espécie, mas a funcionalidade deste órgão ou característica, que permitiria duas coisas: maiores chances de sobrevivência e mais oportunidades para a reprodução.

Até aqui, tudo bem. Se raciocinamos sobre a teoria de Darwin, que é a mais amplamente aceita na comunidade científica apesar de detalhes teóricos que ainda não foram resolvidos, podemos aceitar que ela oferece uma explicação coerente sobre o surgimento e o desenvolvimento da vida no planeta. Em suma, ela propõe que não existe uma meta final para a vida, mas sim que esta vai se construindo um pouco a esmo, ao sabor de acasos e acidentes, sempre visando a maior probabilidade de transmissão das características que tornam um organismo mais bem adaptado a um determinado meio. Até se pode aceitar esses mecanismos para os seres vivos, mas isso acaba trazendo problemas sérios quando falamos dos seres humanos.

O surgimento e evolução da espécie humana ainda possui lacunas importantes. Entretanto considera-se na comunidade científica que a espécie humana é uma como as outras demais, e que também passou pelo processo de evolução. Assim sendo, é pacífico considerar que também fomos vítimas de acasos, acidentes e manipulações do meio para que hoje sejamos a espécie que somos. Isso traz problemas sérios para nossa auto-imagem, pois nos desenvolvemos acreditando que somos especiais porque fomos criados por um ser inteligente. Admitir os processos evolutivos como constituidores de nossa estrutura física pode ser até aceitável, mas é difícil considerar que mesmo nossas habilidades mentais, produto de nosso funcionamento cerebral, também é um produto da evolução, porque isso nos destitui de um lugar onde gostamos de achar que estamos, no topo da criação.

Claro está que nenhuma outra espécie conhecida possui um grau de auto-consciência nem capacidade de raciocínio como a nossa, mas isso não significa necessariamente que somos assim graças a uma intervenção supra-natural ou que houve algo como um "projeto" que constituiu nossa espécie como nos apresentamos hoje. Se já é difícil considerar que não somos conscientes de muito do que ocorre em nossa estrutura mental, é difícil também considerar que só somos o que somos graças a um conjunto fortuito de eventos não relacionados entre si. Mas pode haver um benefício em raciocinar assim: nos tornamos mais humildes perante o que somos para nós mesmos, e as diferenças entre nossa vida e a dos outros seres vivos acabam minimizando. Assim podemos nos tornar mais responsáveis, não por causa de um desígnio divino, mas por puro e simples reconhecimento de que não somos mais do que nenhum outro ser.

domingo, 15 de julho de 2007

Corpo e mente (IV)

Li certa vez (não sei onde nem por quem foi escrito) que a cada três anos todos os átomos do nosso corpo são substituídos. Somos então totalmente diferentes do ponto de vista atômico, pois não possuo mais o mesmo conjunto de átomos. E se estendermos o raciocínio para mais além, no nível sub-atômico, podemos dizer que o problema é bem pior, pois se os átomos são compostos por sub-partículas que podem, ao bel-prazer da física quântica, aparecer ou desaparecer do nosso universo sem nos prestar conta (segundo algumas interpretações), aí sim a coisa complica ainda mais. Conclui-se que somos compostos de elementos que podem simplesmente desaparecer ou aparecer de um universo paralelo e que, além disso, nossos átomos mais cedo ou mais tarde nos abandonam em troca de outros. Mas que droga, por que não nos lembramos das viagens de nossas sub-partículas nos universos paralelos?

Então se fôssemos partir para o mais recôndito da matéria poderíamos dizer que a cada três anos somos totalmente outra pessoa. Mas porque esse dado não condiz com nossa percepção? Temos um sentimento de identidade de que nós somos "nós", apesar de nossas experiências mudarem dia a dia. Lembramos que ontem almoçamos com nossos pais, fomos trabalhar e depois dormimos. Alguém sensato diria: OK, somos feitos de matéria e energia, mas nossa consciência, memória e demais funções dependem basicamente do funcionamento dos neurônios, e é por isso que mantemos nossa identidade. Sim, a não ser que voltemos atrás na argumentação e consideremos que a sede do pensamento é a alma.

Defender que coisas como "o pensamento interfere na organização da matéria" ou "pensamento é energia que influencia a energia" como fazem alguns pseudo-cientistas é um raciocínio falho que está baseado nesse tipo de equívoco. No anseio de encontrar "algo" que possa ser a sede do ser, ou do desejo infantil de querer modificar o mundo com nossos pensamentos acaba-se usando a física quântica, que praticamente ninguém conhece devidamente além dos próprios físicos quânticos, para levar a um nível desconhecido aquilo que realmente é um mistério. Em outras palavras, tenta-se explicar um mistério utilizando um conhecimento que só pode ser adequadamente avaliado se conhecemos matemática com um nível elevado de complexidade. Isso significa que pessoas que não acreditam nos métodos da ciência, ou ao menos não acreditam nos seus resultados, acabam usando os conhecimentos dos cientistas, que utilizam uma racionalidade extrema e uma linguagem matemática: usam como argumento aquilo que desejam combater. Isso prova que praticamente nada resiste a uma boa retórica, um conhecimento escasso sobre ciência e o desejo de provar que temos/somos algo além de nosso corpo.

sábado, 7 de julho de 2007

Corpo e mente (III): Olá... tem alguém em casa?

A consciência é ainda um grande mistério, embora grandes avanços tenham sido feitos no seu estudo. Ela é um fenômeno abrangente, que permite tanto o reconhecimento sensorial do mundo quanto o reconhecimento de nós mesmos, de nossa identidade para nós e para os outros. Mas mesmo sendo abrangente, a consciência não é capaz de lidar com algumas informações (que acabam por ser, por definição, inconscientes), como por exemplo a secreção glandular, o fluxo sanguíneo e a lubrificação das articulações. Ou alguém tem consciência disso?

Mesmo os níveis elementares da consciência já despertam nosso assombro, que é aquele bom e velho conceito de consciência como "estar ciente de", como por exemplo o som de uma música ou a visão de um belo carro. Como é possível que uma meia-dúzia de estímulos físicos sejam capazes de sensibilizar nossas terminações nervosas, que acabam traduzindo isso em impulsos que são levados ao cérebro? E como é possível que estímulos nervosos sejam "montados" e gerando uma imagem, com cores, texturas, bordas, sensação de distância num emaranhado de células?

O pior do problema não é isso, mas é a "outra" consciência, aquela que me diz que eu sou eu, que eu sou diferente de você, e que, quando acordo, sei que sou eu, o que fiz ontem e anteontem, que sou do sexo masculino e que sou psicólogo. Compreender como organizamos nossas informações sensoriais já é uma tarefa gigante; nos defrontar com a pergunta "quem somos nós" é maior ainda.

Volto ao nosso bom e velho senso comum para tentar responder o problema da consciência: ou estamos abordando uma questão complexa demais que pode ser resolvida de forma absurdamente simples, dizendo que é a "alma" que faz o serviço todo, ou então consideramos que estamos diante de um pseudo-problema. Se admitimos que algo chamado "alma" existe, OK, o problema está resolvido, e não pela ciência, mas pela religião. Mas se queremos resolver o problema cientificamente, precisamos de outras explicações que sejam poderosas o suficiente e que possam ser testadas.

Falo que talvez o problema da consciência seja um pseudo-problema porque ele está mal-formulado, e se for assim nenhuma resposta será satisfatória. Talvez a resposta não seja "quem" é a consciência, mas sim que a consciência é uma ilusão, e das melhores. Mas se for uma ilusão... quem somos nós? Não foi identificada uma região que pudesse ser chamada de "a sede da consciência", porque a consciência é composta pela coordenação de diversos processos mentais. Isso quer dizer que é possível modificar e danificar processos que compõem o conjunto chamado consciência, gerando quadros bizarros onde alguém é incapaz de reconhecer a si mesmo num espelho. Portanto, mais do que ser uma região específica do cérebro, ela é o produto do funcionamento simultâneo de diversos processos mentais. E se for assim... quem é você e onde está agora? tem alguém em casa?

terça-feira, 3 de julho de 2007

Corpo e mente (II)

Existe uma história grega sobre uma personagem chamada Atlas. Ele seria o responsável por sustentar o orbe terrestre sobre seus ombros, e teve esse castigo imputado por Zeus porque tentou, com outros Titãs, dominar o Olimpo.

Essa história, como muitas outras da mitologia, serviu por um bom tempo como explicação. Mas ao ler a história, fica a pergunta: se Atlas sustenta a Terra e os céus, onde está apoiado? Deveria haver algo que o sustentasse. Algumas versões dessa história dizem que ele estaria sobre o casco de uma tartaruga gigantesca. Contudo, isso só faz retroceder o problema a outro ponto, que é saber onde a tal tartaruga estaria apoiada. E assim sucessivamente, ad infinitum.

Uma analogia dessa história é utilizada comumente na filosofia da mente. Há quem diga, no senso comum, que na mente existe um “ser” que é capaz de receber as informações dos sentidos, processar as informações, captar as imagens dos olhos, registrar os eventos na memória, em suma, uma espécie de “pessoazinha” que gerencia as informações. Bem, aqui cabe a pergunta: se existisse uma “pessoazinha” assim comandando nossa mente, quem comandaria o que essa “pessoazinha” pensa? Porque ela deveria ter uma mente para pensar, processar as informações; também deveria ter memória para acionar os “comandos” mentais para registrar a nossa memória, ter um aparato sensorial para identificar se uma informação é um estímulo sensorial ou pensamento, e assim por diante. Então, ela teria uma “pessoazinha” dentro da cabeça dela? E até onde isso retrocederia?

Fica claro que essa explicação é insuficiente. Por mais que não saibamos bem o que faz com que tenhamos uma mente, temos que admitir que o aparato neural é a base da mente. A não ser, claro, que façamos uma opção – não tão diferente da explicação dada ao apoio de Atlas – de explicar o pensamento humano por outra entidade mítica, que é a alma.

Considerar a alma como sede da vontade, do pensamento e dos sentimentos é assumir um ônus que a ciência não tem como pagar. Por exemplo, supondo que a alma é a sede dos pensamentos, de que ela seria feita? Seria imaterial, diriam alguns; mas agora ainda persiste a pergunta feita anteriormente (Corpo e mente, de 29 de junho de 2007): se é imaterial, como ela influenciaria os neurônios? Neurônios são físicos, portanto necessitam de uma base física para que sejam influenciados. Isso gera mais transtornos do que explicações, e o pior de tudo é que estaríamos totalmente no terreno da metafísica, e não no campo da ciência.

Outros, lançando mão de argumentos pseudo-científicos, diriam que a alma é energia, e a energia pode influenciar a matéria porque é uma outra face desta. Há uns 300 ou 400 anos se diria que a alma era uma quintessência (ou seja, uma essência não-material, pois o conceito de energia ainda não havia sido sistematizado) ou um éter (igualmente algo não-material e não-identificável, cuja existência foi refutada por experimentos no início do século XX). Hoje ainda há quem defenda a existência de um éter, mas não vou entrar nessa discussão: quero assinalar que dizer que a alma é feita de energia é usar de um mecanismo psíquico já explicado pela Gestalt: se duas coisas possuem alguma propriedade em comum, são percebidas como relacionadas (princípio da semelhança). Então, se a energia é algo invisível, e a alma é algo invisível, seria legítimo concluir que ambas possuem uma natureza em comum; daí a considerar que a alma é energia é um passo curto.