Pós-graduações IMED 2013

domingo, 30 de março de 2008

O recuo de Deus

Ao analisarmos a história das ciências, observamos que gradativamente o pensamento racional avançou no campo de conhecimentos menos precisos, o que permitiu uma modificação e um controle cada vez maior dos processos da Natureza e de como a compreendemos. Este movimento foi observado inicialmente no pensamento mitológico e depois se instaurou no campo religioso.

Por que ciência e religião entram, costumeiramente, em conflito? Porque ambas propõem explicações e métodos diferentes sobre como o mundo funciona. A ciência visa compreender e modificar o mundo a partir de evidências obtidas por experimentos, ou seja, o mundo precisa ser "testado" para que se veja como ele funciona. Na religião, esse critério é dispensável: não é obrigatório que a pessoa teste o mundo para explicá-lo, mas é fundamental a crença na ação de um agente superior. Portanto, o conhecimento é diferente porque o método de obtenção deste conhecimento é diferente.

O conflito começa quando a ciência busca testar temas que são considerados sagrados, como é atualmente o caso das células-tronco e da pesquisa genética com seres humanos. Esses assuntos encarnam as modernas discussões teológicas que antes tinham lugar na astronomia. Talvez hoje nem nos assombremos pelo fato de ter sido demonstrado que a Terra gira em torno do Sol, mesmo que nossos sentidos digam o contrário, mas nos séculos XVI e XVII esse pensamento causava um desconforto tão grande na forma como o mundo era percebido que os cientistas foram muito atacados. O tempo mostrou que a ciência venceu, porque ela testou a realidade.

Nesses movimentos da investigação científica, a idéia de Deus recua cada vez mais, e quanto mais a ciência caminha, parece haver cada vez menos espaço para este recuo. Se antes podia-se pensar que ele estava nos céus, hoje as explicações sobre Deus são diferentes, e se diz que sua presença se manifesta na física quântica, ou que ele é uma "energia" que permeia todas as coisas. Até onde esse recuo irá?

Na verdade, algumas questões precisam ser colocadas aqui. Quando se discute ciência e religião, religiosos podem combater a ciência como se ela fosse uma forma concorrente de crença, um tipo "diferente" de religião. Esse argumento não tem validade, porque o método que a ciência usa é a melhor garantia que se tem que o conhecimento obtido pelo experimento não vai se tornar um dogma. Podemos não acreditar na eletricidade, mas isso não vai impedir que ela continue existindo, independente de nossa crença. O grande trunfo da ciência é que ela se auto-atualiza, e faz isso baseando-se em evidências.

Depois, é fundamental separar duas características da religião: uma é a tentativa de explicar a existência das coisas, e a outra é o consolo que ela dá para o desamparo humano. Quanto se fala de ciência, é bastante clara a separação entre estas duas partes: as ciências duras explicam como as coisas funcionam, e a psicologia, como ciência soft, busca compreender de onde vem nosso sentimento de desamparo. Mas na religião, essa separação não é nítida. Ao mesmo tempo, ela responde a várias perguntas fundamentais: quem somos, porque existimos e qual é o sentido de nossa existência. Portanto, uma das coisas que torna a religião poderosa é que ela serve a múltiplos propósitos, coisa que a ciência não faz; as respostas que ela dá podem ser interligadas e, ao mesmo tempo, satisfazer muitas de nossas necessidades, não só a de conhecimento, mas a de sentido de existência e de afeto.

Apesar disso, é interessante observar que a religião muitas vezes deseja uma legitimação da ciência. Por que isso ocorre? Porque a ciência tem um tipo de conhecimento que a religião não possui, que é a possibilidade - e o fato - de manipular o mundo de uma forma mais precisa. Talvez isso mova muitos religiosos em direção ao pensamento científico, assim como muitos cientistas buscam uma aproximação com a religião visando respostas que a ciência não tem conseguido dar ou que julgam insatisfatórias.

Psicologicamente, a idéia de Deus tem muita influência, e talvez a última fronteira deste recuo seja a mente humana. De certa forma, podemos dizer que ela volta, ao fazer isso, de onde saiu. É possível que, em vista das necessidades humanas, ela encontre um abrigo seguro aí para sempre. Mesmo que haja pessoas que não acreditem na existência divina com base no que se sabe de ciência, grande parcela da população ainda necessitará da idéia de Deus lhe trazendo consolo e orientando seu comportamento.